Havia dois dias que a música “Amianto”,
da banda Supercombo, não saia de meus pensamentos. Talvez sensibilizada pelo
olhar triste da menina de doze anos que disse-me há poucos dias da sua
desmotivação para viver. Talvez inquieta pelo olhar de ansiedade e medo que vi nos
olhos da menina de 11 anos que fui e com quem me encontrei em alguns momentos
de meditação. Ou quem sabe a história daquela colega que não estava mais
encontrando sentido na vida, ou as constantes e crescentes histórias de autolesão
pela cidade e mundo a fora e/ou a soma de tudo na minha rotina maluca. Fato que
a música colou em mim. A sonoridade leve, o teclado delicado, a guitarra
dramática, os efeitos dançantes, as vozes entregues em uma letra-pedido. Tudo
bateu em minha atual sintonia indie rock. Sábia, a natureza parecia alertar
para o mais próximo “brincar de morrer” que me alcançaria, até então, alguns dias
adiante. E antes que os politicamente corretos de plantão venham grilar com
coisas do tipo “não pode usar o termo brincadeira
para falar de um tema tão grave”, assinalo que para nós, eu e meus encontros no
universo, brincadeira é coisa séria seríssima sim, sim senhor e sim senhora.
Já era final de noite de mais um
longo dia de trabalho. A aula de pilates dera uma aliviada no corpo e o banho
acalentou a pele. Eu acabara de aninhar-me ao sofá quando o telefone tocou. “Viu
a mensagem?”, “Não”. Havia uma despedida, regada a declarações de amor,
agradecimentos pela amizade e pedido de perdão pela desistência da vida. Em
seguida foto das três cartelas de remédios supostamente tomados para dar fim a
sua dor. Alguém que amávamos queria morrer, e não sabíamos o que fazer. Eu, outra
amiga e um amigo tentávamos pensar enquanto nos encaminhávamos rumo a moça que
despedia-se, “o que faremos?”, “quais remédios tomou?”, “ela ainda responde as
mensagens”, “ela parou de responder”, “liga pro SAMU”. O doutor do serviço de
urgência ouviu com atenção a história, reforçou que a medicação era de baixo
risco, mas que era importante passar por uma avaliação médica. Nenhuma novidade
sob o sol, exceto que profissionais do SAMU não fornecem seus nomes (só pedi porque
ele disse pra ligar para ele se algo estivesse diferente quando chegássemos ao
nosso destino, ‘como pediria pra falar com ele sem saber quem era?’, até
entendo não fornecer o nome verdadeiro, mas seria útil ter um pseudônimo ao menos).
Enfim, lá estávamos nós, entrando livremente numa portaria que jamais nos
permitiu passar sem a autorização da moradora. “Podem ir, ela autorizou
qualquer pessoa entrar”. Encontramos a porta aberta e a dona de um dos sorrisos
mais lindos que já vi encolhida no meio da cama em choro silencioso. As
lágrimas escorriam pelo rosto e a princípio recusou-se a sair da cama. “Nem
relute, você vai”. Tentamos ser práticas, documento, casaco, embalagens dos
remédios, chave de casa. Ao entrarmos no carro fiquei pensando que não havíamos
apagado as luzes, mas nem comentei, me parecia insignificante naquele momento. Íamos conversando, tentando mantê-la acordada,
as mãos frias, ao seu lado eu sentia os tremores percorrerem seu corpo. Eu lembrava
da música da Supercombo, ‘o que a vida aprontou dessa vez?’, era fato que ela
pedia ajuda, era fato que lá no fundo, mesmo com toda sua dor, ela não queria
morrer, mas dentro de todo o sofrimento interno que passava não conseguia pedir
ajuda de outro modo. A história de vida, os segredos guardados, as relações interpessoais,
a longa ociosidade, o isolamento social, a falta de metas, a desesperança, um
amor que de bandido passou a não correspondido. Uma bomba relógio prestes a
explodir. Longa espera até o atendimento. Serviço público. Gente sofrendo de todos
os lados. Gente chorando de dor. Ela só tremia. Não haviam mais lágrimas. Dizia
sentir dores no estômago, extremidades formigando e um frio interno. Por fora
parecia nada sentir, os olhos pareciam distantes. Pedi pra contatar a família,
não quis. Fiz um acordo para o dia seguinte. Madrugada a dentro, foi atendida,
medicada na veia. Encaminhamento psiquiátrico e orientações dadas, lá fomos
nós.
A trouxe pra minha casa, era
impossível deixa-la sozinha e também não tinha como ir pra casa dela no meio do
vendaval de uma coleta de dados. Deitando às 3:30 o sono não veio. Tinha que
acordar logo mais, mas sabia que não adiantaria forçar a barra. Amianto veio
novamente. Chorei um pouco. Pesquisei brevemente sobre do que se tratava o nome
da canção que me perseguia. Fibra mineral de propriedades impressionantes, “resistência
a altas temperaturas, boa qualidade isolante, flexibilidade, durabilidade,
entre outras”. E tudo isso a um “baixo custo”. Parecia descrição do ser humano ‘perfeito’
exigido nos texto de auto ajuda ou nas palestras ‘motivacionais’ que
organizações impunham a seus trabalhadores. Não, não é errado ter qualidades
que permite lidar bem com os dilemas da vida. Mas é cruel culpabilizar quem não
apresenta tais características, ignorando todos os contextos desencadeadores e
exploradores ao redor. Também não cabe vitimização, embora o capitalismo faça
sim, seletivamente, as suas vítimas. Trata-se de olhar o todo e também as
partes. Trata-se de um olhar integral.
O amianto, a fibra resiliente que foi chamada de o “mineral mágico” do século XX, se tronou “poeira assassina”.
Estudos comprovaram a sua periculosidade após a investigação das constantes
doenças em trabalhadores da indústria de amianto, da construção civil, mineiros
e mecânicos que lidam com freios. Fico me perguntando quando daremos conta dos
perigos da exigência do espírito resiliente, das nomenclaturas psiquiátricas a
tudo que não se flexiona, não resiste, não supera, não dura e que dá trabalho. É,
depressão é coisa séria sim. Tão séria quanto o fingimento de que não temos uma
sociedade adoecedora, que quer nos dar manuais para tudo. Para quem não consegue lidar com seus dilemas
tal como prescreve a medicalização da vida nos ditames da sociedade do consumo,
viver neste mundo é realmente muito mais pesado, e cria-se qualquer possibilidade
para sair dele.
A moça está sendo cuidada. Anseio
ver novamente o brilho da vontade de viver em seus olhos, mesmo entendendo que, às
vezes, é de fato difícil não desejar inexistir. Toda as analogias familiares da
canção Amianto não são gratuitas. Não, não estou culpando mães e pais. Mas
família, socialização primária, é berço para muitas coisas boas e más (não no sentido moral dos termos). Família
também é instituição, também segue padrões, também constroem suas pautas com
bases socialmente estabelecidas. Também não se trata de acusar as famílias, mas de reconhecer que uma vez que são construções sociais, também podem ser adoecedoras. Desfazer esses nós não é nada fácil. Viver é
mesmo muito perigoso, como já dizia Guimarães Rosa. Para Fernando Pessoa, não é preciso
(no sentido de precisão). E foi nesse viés de incerteza, risco e fluidez, e não de
resiliência, que fui convencida pela referida música “que a vida é como mãe que faz o
jantar e obriga os filhos a comer os vegetais, pois sabe que faz bem, e a
morte, é como pai que bate na mãe e rouba os filhos do prazer de brincar, como
se não houvesse amanhã”. Você não precisa resistir sempre, nem desistir. Vamos pra um
café? Conversar? Ninguém é de ferro. Tampouco de amianto.
Denise Viana
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